Por Allan Saffiotti
Transcrição da entrevista que dei para a jornalista Iolanda Paz, da Agência Universitária de Notícias - USP, sobre minha tese de doutorado, defendida em Março de 2017.
Nova noção de “território” para saúde mental é proposta na
USP
O pesquisador do Instituto de Psicologia (IPUSP) Allan
Saffiotti, ao estudar os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em sua tese de
doutorado, apresentou uma nova definição para “território”: o entendimento dele
como ethos. Allan pensou em um conceito que auxiliasse os profissionais da
saúde mental em seus trabalhos diários. A ideia é enxergar o cuidado como uma
ética, colocando-se como escuta para o outro.
O estudo presente na tese “Atenção em Saúde Mental a partir
da noção de território: uma reflexão sobre os Centros de Atenção Psicossocial”,
de 2017, concentrou-se nos CAPS em razão da tarefa que foi colocada a eles,
desde a Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) da década de 1970, de transformar
os modos de relação entre loucura e sociedade – tendo sido escolhidos
como o principal equipamento substitutivo ao hospital psiquiátrico.
Território como ethos
A proposta dos CAPS e da RPB, influenciada pelo movimento
que ocorreu em Trieste, na Itália, foi cessar o cuidado que existia na saúde
mental enquanto tutela e controle. De acordo com Franco Basaglia, psiquiatra
italiano citado na tese, todo elemento desviante nas sociedades era mandado
para o hospital psiquiátrico, não só o louco. A intenção da Reforma, então, foi
romper com a supremacia da psiquiatria enquanto única detentora do saber sobre
a loucura, modificando a cultura manicomial por meio de um cuidado que
promovesse autonomia e movimento ao sujeito.
Segundo Allan, a ideia de “território” na saúde mental está
ligada a essa concepção de promoção de vida, mas o pesquisador percebeu durante
seu estudo que a palavra era usada de maneira polissêmica tanto por gestores
quanto por trabalhadores. É um termo que não possui origem na Psicologia – e
sim, na Etologia e na Geografia – e que foi apropriado por alguns teóricos da
saúde, sendo utilizado, depois, em leis. Inclusive nelas, “território”
apresenta mais de um significado.
Por vezes, a definição é “área de abrangência de um
dispositivo”, pois equipamentos da saúde como os CAPS e as Unidades Básicas de
Saúde (UBS) são regionalizados. Já em outros momentos, aparece como uma
oposição entre dentro e fora: “trabalhar no território”, por exemplo, é fazer
ações na rua, fora de instituições. Uma outra forma de enxergar “território” é
como lócus em que se planeja e executa uma ação. Então, se há muitos
diabéticos em determinada área, as práticas de saúde são pensadas considerando
isso.
Para encontrar sua definição, Allan seguiu por dois caminhos
no estudo: primeiro, descreveu sua experiência como profissional da saúde
mental – ele trabalhou no Complexo Psiquiátrico do Juqueri e no CAPS Itapeva –
para explicitar o lugar de onde estava analisando. Depois, fez uma escuta dos
trabalhadores de CAPS. Acompanhou cinco grupos em quatro CAPS de diferentes
regiões da cidade de São Paulo, baseando-se no Grupo Operativo, do
psiquiatra Pichon-Rivière.
O Grupo Operativo é utilizado para unir pessoas em
um determinado tempo e espaço, dando-lhes uma tarefa. A questão proposta por
Allan foi: “Falem sobre como se trabalha neste CAPS considerando a política
atual de saúde mental”. Ele evitou fazer perguntas diretas aos trabalhadores
dos CAPS para não obter respostas formais ou decoradas. A partir de como eles
realizavam o trabalho e do que chamavam de “território”, o pesquisador fez um
diálogo entre as declarações deles, sua própria experiência profissional e as
definições dos autores citados na tese. Dessa forma, chegou a sua noção de “território”
como ethos.
Durante a pesquisa em campo, Allan constatou que um dos
significados mais repetidos remetia à oposição entre “dentro e fora”, ou seja,
o que definiria “território” seriam ações externas ao equipamento. Entretanto,
para ele, essa é uma polarização falsa: o lugar importa, porque uma instituição
sozinha não é promotora de movimento, mas também é possível haver controle na
rua – capilarizando-o.
Dessa forma, sua definição buscou uma nova maneira de
enxergar “território”, que é pensá-lo como “morada”. Para isso, o trabalhador
da saúde mental tem de se colocar junto ao sujeito cuidado como uma escuta
humana não classificadora, não ordenadora e não controladora. Historicamente, a
saúde mental silenciou os sujeitos, que tiveram suas vontades e desejos
negados. “Quando se classifica o outro em números e categorias, não se escuta
ele”, diz Allan. “Não existe um único esquizofrênico que seja igual a outro”,
por exemplo. É proposto, então, que no contato com o sujeito que se defina o
que será feito para o seu cuidado, sempre considerando o que aquela pessoa quer
e precisa. “Pensar o território como ethos é uma forma de construir
um lugar no mundo junto ao sujeito e não por ele”, Allan
explica.
O papel dos CAPS na Reforma Psiquiátrica Brasileira
Antes da Reforma, a assistência em saúde mental no Brasil
era baseada majoritariamente em internações em hospitais psiquiátricos. Neles,
muitos sujeitos morriam de fome, desidratação, frio, maus tratos e insolação,
vivendo em ambientes desumanos e violentos. O movimento da Reforma veio para
romper com esse tipo de “cuidado” disciplinador e excludente. “Não tinha
cuidado, era depósito de gente”, afirma Allan.
A Reforma Psiquiátrica Brasileira emergiu em meio aos
movimentos sociais da década de 1970 que lutavam por cidadania e pela
redemocratização do país. As primeiras experiências substitutivas aos
hospitais psiquiátricos começaram a surgir na década de 1980, e o CAPS foi uma
dentre outras. O primeiro CAPS do Brasil, por exemplo, foi inaugurado em
1987, na cidade de São Paulo: Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luís da
Rocha Cerqueira, conhecido como “CAPS da Rua Itapeva”.
De acordo com o Ministério da Saúde, os CAPS são
instituições de caráter aberto e comunitário destinadas a acolher pacientes com
transtornos mentais, oferecendo-lhes atendimento médico e psicológico por meio
de equipes multiprofissionais e transdisciplinares. Eles têm como principal
objetivo estimular uma integração social, cultural e familiar no espaço da
cidade no qual os sujeitos atendidos desenvolvem suas vidas cotidianas.
Escolhidos para ser o carro-chefe da Reforma no Brasil, os
CAPS adquiriram um papel central nas políticas governamentais. Por meio
da Portaria
Nº. 336, de 2002, o Ministério da Saúde elegeu o “CAPS” como designação
oficial das experiências substitutivas ao modelo hospitalocêntrico. Existem
2.209 CAPS no Brasil, segundo dados de 2015 do referido ministério, e eles são
classificados em diferentes
tipos de acordo com o tamanho e atendimento oferecido.
Entraves à verdadeira reforma
Um obstáculo ao tipo de cuidado proposto por Allan, porém, é
a burocracia. “Não de hoje, a estrutura pública é fortemente burocrática, e os
CAPS não romperam com isso”, afirma Allan. Ele pontua a lógica de produção
existente na saúde pública e a hierarquização que faz com que os trabalhadores
tenham de seguir regras sem sentido para o cuidado que estão buscando. Chega a
eles como ordem, por exemplo, a determinação de que formem quatro grupos com
seis pessoas por semana. A consequência é a inversão da demanda: o profissional
não cria grupos para atender as necessidades das pessoas que está cuidando, mas
porque precisa cumprir a exigência.
Além disso, outro entrave é a falta de tempo para uma escuta
delicada. Segundo Allan, a maioria dos CAPS trabalha com sobrecarga. “Como eles
foram escolhidos para ser o carro-chefe da Reforma, houve um super investimento
e uma super responsabilização também”, explica. Há muitas pessoas para
receberem atendimento e uma quantidade que não é suficiente para atender. Essa
realidade é particularmente problemática porque o cuidado em saúde mental não
possui respostas exatas. Os profissionais fazem apostas do que funcionará para
determinado paciente e precisam revisá-las de tempos em tempos com o sujeito.
O estudo de Allan também concluiu que a rede de saúde ainda
é incipiente e que os CAPS têm ocupado um lugar centralizado no cuidado
oferecido aos sujeitos em sofrimento psíquico. “Quando [o atendimento] fica
concentrado num ponto só, cria-se uma dependência e uma institucionalização de
forma parecida com a que o hospital psiquiátrico fazia”, afirma Allan. Segundo
ele, outras experiências substitutivas ao modelo hospitalocêntrico foram
exitosas, mas não receberam tantos investimentos quanto os CAPS. Uma delas
seria o Centro de Convivência e Cooperativa (CECCO), que não possui um caráter
de saúde mental: é um local de convivência para a comunidade com o objetivo de
integrar o sujeito à vida social.
Para cessar essa política capscêntrica de concentração do
cuidado nos CAPS, Allan acredita que é necessário diversificar, com mais
equipamentos de saúde mental e também da assistência social, da cultura e dos
esportes.
Em 2011, a Portaria
Nº. 3.088 instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e, desde
então, o governo federal vem aumentando progressivamente o investimento em
serviços de saúde mental, mas, como lembra Allan, esse é um processo bastante
demorado.
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