quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Desespero dezembrino


 Sempre me chamou a atenção a atmosfera que a cidade ganha em dezembro, pois, além da decoração natalina, parece que todos saem às ruas ao mesmo tempo e ficam muito mais agitados. O trânsito, que já é ordinariamente ruim, piora muito, com motoristas irritadiços e apressados; sem contar a incrível quantidade de eventos comemorativos, que nos levam muitas vezes a emendar um em outro. Parece que tem anfetamina no ar. As ocupações mais simples, como ir ao mercado ou ao trabalho, viram operações complexas, pois de uma hora para a outra passam a competir por tempo com uma infinidade de outras atividades.

          Nesta época, mais que em outras, torna-se uma necessidade tão básica como as fisiológicas “aproveitar tudo e não perder nada”: todos os happy hours, amigos secretos, jantares e almoços de despedida. Como se fosse imprescindível encontrar todos os amigos e todos os familiares e todos os colegas de trabalho e o pessoal da faculdade/academia/etc até o dia 31 de dezembro. Toda essa “animação” me impressiona negativamente, e quando paro para refletir nesse exagero de enfeites, festas, compras, consumo de comida e bebida, não vejo trocas e fruição, e sim, desespero.




           Mas, o que significa o final do ano? Nosso tempo é dividido arbitrariamente em “anos” e, da mesma forma, o “começo” do ano também é arbitrário, tanto no calendário ocidental moderno, quanto nos calendários chinês, maia, etc. Esses ciclos determinam o ano fiscal, o ano letivo, os calendários dos esportes, os períodos de férias, e a partir daí organizamos nossa vida cotidiana. Com o fim do ano, fechamos um ciclo e abrimos outro, como a colheita fechava uma etapa quando tínhamos a vida regida pelas estações. Os tempos são outros, e temos grande liberdade em relação ao tempo da natureza, entretanto, não toda liberdade. Nossa vida, como toda vida, tem seu ciclo: amanhecemos, entardecemos e anoitecemos. E o “desespero dezembrino”, com seu exacerbado modo de “celebrar a vida”, vem lembrar seu negativo, tão negado em nosso modo de vida atual: a morte e os sentidos que ela traz (não temos todo o tempo do mundo, nossa potência é limitada, falhamos, perdemos, erramos). E, como tudo que é negado, volta. Não como objeto de um problema, mas como angústia, aquele desconforto indefinível que ora paralisa, ora nos põe a agir sem atinar porque agimos.

          E que recursos, que modelos subjetivos, nos são oferecidos para lidar com a morte, em nossa sociedade? Como exemplo de expressões de nossa cultura, observemos os ideais de homem e de mulher presentes nas propagandas da televisão, com a supervalorização da imagem do homem burguês (branco; hétero; casado e com filhos, bom marido e pai presente; produtivo e “vencedor”; joga bola, bebe cerveja e não tem barriga) e de sua contraparte feminina (também branca e hétero; supermãe que educa os filhos e limpa a casa sem se despentear; profissional de sucesso sem deixar de apoiar o marido; “antenada” na moda, sexy e sem celulite). Claro que não espero que falem de morte enquanto vendem celulares, margarinas, carros ou cerveja, mas tudo o que lembra a passagem do tempo é suavizado (no máximo uns cabelos brancos aqui ou ali), mas, na verdade, o envelhecimento não é abordado (salvo quando falam de descontos em drogarias...). E a morte, negada.

          E como lidamos? Querendo ou não, os ciclos se fecham: terminamos ou paramos os cursos e faculdades, entramos e saímos de empregos, casamentos começam e terminam, seja pelo esgotamento da relação ou pelo fim da vida de um do par. Algumas vezes a aparição de uma doença grave (http://www.hypeness.com.br/2013/08/ela-descobriu-que-teria-pouco-tempo-de-vida-e-gastou-tudo-o-que-tinha-viajando/) provoca uma mudança na forma de viver, outras vezes essa mudança vem apoiada na vivência das “pequenas mortes” no cotidiano. A morte se impõe, e, na falta de recursos subjetivos para lidar com ela, ficamos no desespero ou na atuação, como, por exemplo, nesses excessos todos de dezembro. O final do ano, como fim de ciclo mesmo que arbitrário, faz-nos lembrar não só do que planejamos e não foi feito, mas das pessoas que nos foram queridas e já se foram, os amores que vivemos e aqueles que sonhamos e nunca chegaram a ser vividos, lugares e momentos de vida que nos marcaram, positiva ou negativamente, mas que hoje são só memórias.

          Enfim, o final do ano traz a morte para a experiência na vida, mas, na falta de espaço para ser compreendida e aceita, pagamos o preço experienciando-a como vazio ou desespero. Se superamos essa negação, se por ventura ficamos tristes, ou se simplesmente buscamos recolhimento e silêncio nessa época do ano, é provável que esse “descompasso” seja “diagnosticado” como depressão e que nos seja recomendado essa ou aquela medicação.

Poética

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.
                               Vinicius de Moraes

         “Meu tempo é quando”. Meu tempo é quando? Quando é? Sem integrar a morte à vida, não sou onde estou, permaneço cativo do que não vejo, e não me realizo no que faço.


Allan Saffiotti


Imagem retirada do site: http://noticias.band.uol.com.br/cidades/noticia/?id=100000588023&t=

Um comentário:

  1. Boa amigão... somos automaticamente obrigados e "Adestrados" a viver dessa forma pela cultura e educação que recebemos involuntariamente dos nossos pais... o nosso tempo, somos nós que fazemos e administramos... não podemos deixar fugir do controle...

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