Daniela Abarca
Hei de confessar que quando ouvi pela primeira vez - colocado de uma forma despretensiosa talvez - que não escolhemos nada, mas somos nós os escolhidos, como que fisgados por nossos desejos e identificações inconscientes, demorei a digerir tal ideia. No trabalho ao longo de 18 anos junto às organizações, busquei apoiar a formação de lideranças que pudessem tornar-se conscientes e responsáveis não somente por seu desenvolvimento, mas tomassem sua parte no desenvolvimento de seus liderados. De repente, por alguns segundos, presa à minha concretude, coloquei tudo por terra. Procurei aos poucos entender de que lugar, de que ângulo, o portador desta afirmação falava.
Um lado meu extremamente estava tentado a amar a ideia de que se assim o fosse, – novamente aí imperou a concretude –, de mim nada seria exigido. Nenhum trabalho a realizar, uma vez que, de certa forma, lutar contra o que não se conhece é batalha de pronto perdida. O outro, fixamente detido na crença de tantos anos, alimentada pela percepção de que o desenvolvimento e o crescimento humano dependem da capacidade do homem de assumir escolhas responsáveis e conscientes, tanto quanto as consequências delas advindas.
Por fim, na batalha interna, travada não por muito tempo, venceu a reconfortante visão de que se pode criar uma zona intermediária, na qual a escolha, sim, acontece, porém de forma inconsciente, por razões que agora parecem importar menos, dado o fato já posto à superfície.
Esta possibilidade trouxe-me ainda conforto como aspirante a psicanalista. Suavizou a cobrança interna de que meu papel, entre tantos deveres impostos - em sua maioria, por fantasias ligadas à figura - deveria ser o de apoiar o paciente na busca das causas de seu comportamento, crenças e o que mais surgisse como sintomas de queixas. Como se, num passe de mágica, este suposto saber pudesse, por si só, desatar os nós vividos pelos pacientes.
Em meu processo analítico me deparo cada vez mais com o imperativo de aceitar as múltiplas causas que sustentam meu funcionamento. Mais do que travar batalhas contra quem se é - como aquele que procura a panaceia para mudar –, há necessidade de, gradualmente, abandonar atitudes, assumindo escolhas, renúncias e perdas ao longo do processo. O único trabalho possível frente ao determinismo inconsciente é poder reconhecê-lo como princípio fundamental do funcionamento psíquico e, a partir de então, conseguir acessar as diversas causas que nos movem. Então, no trabalho analítico, aos poucos nos darmos conta das possibilidades disponíveis de ação e renúncias necessárias para a realização de nossos desejos. E integrar as características que nos constituem tornando-nos pessoas mais reais, primeiramente para nós mesmos, como alguém que busca a conciliação consigo.
Como psicoterapeuta psicanalítica, exercitando minha capacidade de sonhar com o cliente, posso, se assim for seu querer, ajudá-lo a dar-lhe consciência desta multiplicidade de interesses e desejos que lhe fisgam (para utilizar o termo que tanto me incomodou, a priori) e determinam seu funcionamento mental.
Hoje compreendo o determinismo inconsciente como sendo o principal princípio do funcionamento humano, que prepondera a todo o restante. É o guia máximo das nossas ações, e que alguns tentam por uma vida inteira se aproximar como aquele que busca abrir uma fresta, ainda que mínima, em direção ao entendimento de si.
O tema também me parece um convite limiar à loucura. Se tudo que julgamos ser real é projetado pela nossa lente individual, carregada de desejos e transformações da realidade concreta, questiono se de fato existe o estado de plena consciência. Quando algo me parece claro, ou óbvio demais, tenho me perguntado: Que parte está a me escapar?
Por outro lado, tal movimento me parece saudável, uma vez que faz emergir parte minha que reconhece a falta inerente a todo ser humano, e que me impulsiona para as relações na busca por estas pinceladas complementares que sejam capazes de me revelar todo o quadro.
Talvez resida aí uma das maiores dificuldades humanas: lidar com o narcisismo ferido e, com isso, nos reconhecer como seres incompletos. Podendo, quem sabe, enxergar valor no diferente como complemento às minhas possibilidades. Utopia? Talvez. Certamente, para se dizer o mínimo, visão romântica de uma sociedade que seja capaz de reconhecer e aceitar as capacidades e limitações individuais. Preparada para firmar acordos de convivência que necessariamente nos levem a lidar com a frustração à onipotência, mas que também podem ampliar nosso campo de visão e capacidades.
A despeito de todas as críticas aos sonhos românticos e utópicos, eu ainda prefiro o olhar curioso, como diria Raul Seixas, “prefiro ser uma metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. 1
1 SEIXAS, Raul; Metamorfose Ambulante. In Krig-Ha Bandolo! Philips Records.1973. Faixa 3 (3 min 53) https://youtu.be/7VE6PNwmr9g
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